esperava sentada no chão de carpete, entre o portão 3 e o 4 do aeroporto cheio de nuvens. o atraso meteorológico justificava o atraso operacional, e entre o chão de carpete e o café em frente ao último portão, a três horas eu esperava por um voo que a essa altura parecia imaginário. uma senhora me chamou a atenção. o porquê eu não sei exatamente. deleuzianos diriam que por conta de seu plano de imanência, espinosianos falariam de sua velocidade. o fato é que ela estava agitada, andava com o corpo levemente inclinado para frente, e buscava um assento, ou outra coisa que nem eu nem ela sabíamos. outro fato é que ela usava uma máscara cirúrgica, dessas que só os chineses usam no brasil. parecia simpática, achei isso por conta do arqueado de sua sobrancelha, e pelo que era possível entender de seu olhar, aberto e assertivo. não é comprovado mas acredito que tenha entre 65 e 70 anos. tampouco posso comprovar mas acho que sua avó foi escrava. ela é negra e chamou toda a minha atenção, desisti do livro e me levantei, drenada por aquele imã humano. não foi difícil começar uma conversa, tive sorte de conseguir um espaço ao seu lado, agora estávamos coladas ao portão de embarque e conversávamos como duas amigas. ela me contou que ia para Brasília, como eu, e que tinha três filhos e estava se tratando no hospital sarah kubitschek. de fato, do início de nossa conversa até eu perceber que teria que ir para outro aeroporto e assim me separar dela para sempre, eu entendia parcialmente o que ela falava, mas tentei ao máximo disfarçar minha parca escuta. 1 porque estava muito bom aquela inspiração. 2 porque gosto de me contentar com o que há, sua intermitência parecia suficiente, uma vez que seu corpo, seu jeito, sua existência sem nome já estava me ensinando muito sobre a vida, e eu não queria parecer preocupada demais com a sua saúde. fato que tudo propiciou que eu lhe perguntasse o motivo dela usar a máscara, e ela naturalmente me contou que tinha leucemia, havia operado a medula em agosto passado, e que era sua própria doadora. um fato científico raro, o que comprovava que ela era realmente rara. em um dado momento, tive vontade de vomitar, mas ao invés disso chorei. foi quando contou que a filha mais jovem, durante o pós-operatório, percebeu que uma enfermeira a medicava com a dosagem errada, e que o gesto da filha havia salvado sua vida. eu perdi a minha mãe, não consegui salvar a minha mãe, queria morrer naquele instante, e talvez tenha morrido novamente, como no dia que ela morreu, naquele dia que parecia normal até eu atender aquele maldito telefone. eu queria saber seu nome, mas não perguntei nessa hora. até porque isso mostraria que eu não a escutava tão bem, daí me imaginei perguntando ao menos três vezes como é que se soletrava. o engraçado é que algumas frases saíam translúcidas, a ponto de eu perceber que ela tinha sotaque mineiro, o que comprovava o motivo de sua afetuosidade. acabei perguntando, ela se chamava ariadna, foi o que entendi, já que perguntei uma única vez. o que me soou novamente raro, uma vez que ariadne ajudou teseu a achar o caminho de casa. que fio era esse que estávamos costurando? eu mal sabia o seu nome e já a amava. fato é que houve uma frase que ouvi perfeitamente, a ponto de perceber que estava viva, ali, ainda que afogada em memórias. frase que sou capaz de revivê-la enquanto escrevo, uma verdadeira epifania invertida. não mande matar, ela disse, jamais faça isso, mate você mesma, ela disse. a essa altura já havia sido atropelada, perdendo então a noção concreta do tempo. logo me disseram que eu não poderia embarcar, isso um pouco depois de conseguir fazer com que ela embarcasse primeiro e não pegasse fila, fato que me fez perdê-la de vista. no dia seguinte, pelo grupo de whatsapp da família, fomos informados que o primo rubens, filho de franscisco, irmão do meu avó, havia sido assassinado na porta de casa, enquanto abria o portão de segurança. metida em lágrimas, sua esposa e mãe de seus dois filhos confessou que havia contratado uma pessoa para matá-lo. alegou que tinha um amante mas que não tinha coragem de fazer a coisa sozinha.
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