O ballet é uma impossibilidade matemática. Esta verdade científica empacou a minha cabeça depois que vivi um reencontro improvável com minha professora de matemática da quinta série. Vida é movimento e a vida tem dessas coisas. A vida me fez esbarrar com o acaso, no caso, a antiga professora da escola de freiras, encontrada no vestiário do studio que faço ballet - luz ao Santo Acácio, protetor dos desabrigados, órfãos, náufragos e amantes abandonados.
Por acaso, depois de uns dez anos de descuido, voltei a pensar na minha adolescência e no universo do ballet. Assim como o ballet, lembrar é uma impossibilidade matemática. Às vezes eu penso que eu só comecei a pensar na adolescência. Antes, acho que era só devir, pura energia em fluxo livre, desejo e instinto, assim como os tigres. Minhas memórias só podem ser acessadas a partir de um ponto de vista inconformado, malicioso e entediado, e sou incapaz de lembrar da minha época de quadrúpede. Da infância, só consigo resgatar a concentração das brincadeiras, os medos contados pelos mais velhos e o prazer de cheirar sabonetes e gelatinas coloridas. O resto eu esqueci.
Esqueci e voltei a tentar relacionar o ballet às bizarrices do meu passado escolar. Nas aulas práticas, enquanto esperava os alunos resolverem seus problemas, Fatinha* fumava sem parar. Fatinha sempre fumava sem parar. Entre um pitágoras e outro, caminhava determinada a encontrar o ângulo certo entre sua baforada e a diagonal da porta. Com um objetivo matemático, inspirava fumaça cancerígena e poluía sua faringe e o corredor. Devido a este hábito, seu cheiro de Hollywood era impositivo. Como sempre fui rápida, preguiçosa e boa aluna, não passava pelo mesmo pesar dos meus amigos que iam invariavelmente tirar dúvidas sobre x e y. Com a resposta desenvolvida no caderno, voltavam para suas carteiras fazendo caretas de asco e nojo. Eu tentava não rir por respeito....Mentira.
FATINHA
Depois que eu parei de fumar, foi como se tivesse rejuvenescido vinte anos. Finalmente consegui voltar para o ballet. E sem pigarro.
Depois que eu parei de fumar, foi como se tivesse rejuvenescido vinte anos. Finalmente consegui voltar para o ballet. E sem pigarro.
Pelo depoimento atual de Fatinha, o ballet e o fumo não podem ocupar simultaneamente sua vida. Ela escolheu a dança. Minha decisão não passou pelo cigarro, mas também escolhi a dança, e por causa dela convidei meu passado para dar um giro. Não gostava de ballet na infância...Mentira. Isso é o que minha mãe diz. Como eu já disse, nesta época eu não pensava e não tinha certezas, eu só esquecia. Com doze anos, fui convidada para montar um espetáculo de sapateado. Era a caçula e estreei seis meses depois, com cílios postiços e feliz. Por alguns anos, este acaso me manteve acreditando que eu era muito agitada para o clássico.
Com quinze anos, uma bailarina clássica vive seu auge de vitalidade e vigor. Ainda não tem a inteligência dos anos adquiridos, mas é leve, persistente e competitiva, o que já ajuda. Na minha aula de ballet, a debutante da sala é meu alvo de admiração e análise, tanto por sua precisão quanto por sua abertura e olhar habituado. Não gosto de citar estatísticas, que são desumanas e desinformam, por isso as invento. Assim, posso afirmar que menos de 3,56% dos corpos humanos são geneticamente abertos para o ballet.
Para pessoas de perna de elefante como eu, a busca pelo en dehors é uma guerra sem mortes aparentes. Não se vê resultados, mas há um nítido vazio no pelotão. Girar o fêmur sem incluir os glúteos, mantendo os dedos colados no chão, a terceira posição nos braços, quadril e ombros encaixados, antebraço girado, olhando pra cima e crescendo, crescendo e crescendo. É esta a luta clássica, ballet de forças antagônicas buscando equilíbrio e elevação, uma eterna tentativa mal sucedida de se alcançar o sublime. Agora que penso e optei conscientemente pelo ballet, vivo a chance pacífica de encontrar prazer numa atividade sadomasoquista.
Hoje é segunda e provavelmente vou encontrar Fatinha na aula. A disciplina do ballet está acabando com a sacralidade das minhas memórias. Passo a lembrar de tudo. Da fórmula de Bhaskara à primeira tentativa de subir nas pontas. Eu só queria memorizar a seqüência sem precisar colar da debutante. Sempre fui de lembrar passos e coreografias, mas o ballet é barroco demais para meu estilo caótico de memorização. Acerto a perna, mas erro o braço. Fecho a quinta atrás e perco o tempo. Tudo aqui e agora. Corpo presente e olhar blasé.
FATINHA
Finalmente lembrei da sua mãe. Morena né? Cabelo curto, bem cheio, assim. Ainda moram no Leblon?
Finalmente lembrei da sua mãe. Morena né? Cabelo curto, bem cheio, assim. Ainda moram no Leblon?
NARRADOR
Barra.
Barra.
FATINHA
Isso, esqueci.
Isso, esqueci.
* Seguindo exigências do Ministério das Relações Exteriores, todas as personagens desta crônica foram respeitadas e tiveram seus nomes alterados.
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Um abraço, um feliz 2008 e muito sucesso.